terça-feira, 19 de abril de 2016

Conversa

Ele foi uma chuva de canivetes suíços abertos caindo sobre mim, talhou-me os braços, feriu-me as mãos, me desfigurou até eu me desconhecer, e mesmo assim meus pés dançavam sobre a poça de sangue e linfa que se formava sob eles.
Você já sentiu a dor de se cortar no lugar do corte?
Falo de corte ainda aberto, não suturado, minando sangue, pulsando em dor.
Falo com a propriedade de quem pode falar sobre isso de pernas cruzadas, tomando um café.
Depois dele eu posso falar de muita coisa, querendo ouvir, puxe a cadeira.
Como eu já tinha dito, ele foi uma chuva de canivetes suíços abertos caindo sobre mim. Digo isso livre dos meus excessos, entende? Eu sei o flagelo que foi.
Imagine condicionar-se a uma situação. A dependência foi tanta que sofri ainda mais com o estio.
Mesmo sendo antiga na dor, me tornei indiferente à ela; meus sentimentos não sabiam responder perguntas, aquém desse costume me vi alheia ao que sentia. E olha, eu senti muito. Continuo sentindo, inclusive. Mas agora sinto muito por mim, sabe? Por essa judiação, por esse trauma, por eu não poder fitar meu corpo sem lembrar disso tudo, por não saber se um dia essas lesões somem de mim, se um dia eu tirarei as vestes pra outro, se o deixarei ver e tocar minhas cicatrizes sem que eu sinta vergonha ou aflição, sinto muito por essa violação não somente superficial, por essa trama tatuada na pele que diz demais só por estar lá. Porque o maior impacto de uma cicatriz não é estético, é a perda da sensibilidade na área ofendida, e eu temo muito essa insensibilidade, que essa frieza se instale em mim; porque sentir, mesmo que muitas vezes desordenadamente, talvez seja a coisa que eu mais faça melhor e com mais intensidade na vida.

Então, você já sentiu a dor de se cortar no lugar do corte?

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Não há dormência, não há anestesia, não há analgésico certo.